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Geral
16/07/2025 - 15h25
Por que você precisa ler Meu Pé de Laranja Lima (ao menos uma vez na vida)
Confira a coluna escrita por Emerson Miranda

Foi numa sexta-feira de luz mansa, com o tempo escorrendo devagar entre as frestas da janela, que virei a última página. A casa emudecida ao redor parecia respeitar o que meus olhos haviam acabado de testemunhar. Meu Pé de Laranja Lima não é apenas um livro. É uma ferida aberta costurada com linha de amor. Uma pequena epifania de infância escrita com as mãos trêmulas da saudade.

Há histórias que se lêem com os olhos. Outras, mais raras, com o corpo inteiro. Esse romance de José Mauro de Vasconcelos é uma dessas. A cada capítulo, minha respiração se confundia com a de Zezé — esse menino que, mesmo pequeno demais para o mundo, parecia carregar dentro de si um universo inteiro.

Zezé não é um personagem: é uma criança que todos nós fomos, somos ou conhecemos. De espírito inquieto e imaginação infatigável, vive num lar pobre e abarrotado de silêncios. Seu cotidiano é feito de ausências, palmadas, esperas e pequenas ternuras que, quando aparecem, doem ainda mais — porque são fugidias, quase sempre suspensas antes de amadurecerem.

Ao redor dele, o mundo não é gentil. E o que mais dói não é a pobreza do prato ou do presente de Natal, mas a escassez de escuta. Zezé fala com árvores, bichos, estrelas, porque os humanos ao redor falham na tarefa mais básica: acolher.

Mas aí, entre valões, chineladas e figurinhas trocadas na rua, acontece o milagre. Um pé de laranja lima se torna seu confidente. E o que poderia ser absurdo, se torna um gesto sagrado: Zezé encontra uma escuta no silêncio vegetal da árvore. Minguinho, como ele chama o pé de laranja, fala com ele. A árvore responde. A árvore entende.

E então entendi também: há coisas que só os que têm a alma em carne viva conseguem escutar. Zezé escutava. E agora, terminado o livro, eu também.

O livro é escrito com uma simplicidade aparente, mas sua arquitetura emocional é refinada. José Mauro não subestima a inteligência sensível do leitor. Ele nos conduz por entre ruas empoeiradas, quintais com galinheiros transformados em zoológicos, sonhos de cavalinhos de pau, meias furadas e olhos que se enchem d’água por quase nada.

Mas nem tudo é terno. A história atravessa perdas, violências, verdades duras. Há um momento em que a infância de Zezé termina — e quem lê, sente. É um baque que não vem com estardalhaço, mas com o peso de uma porta que se fecha devagar demais. A criança que sonhava com gravatas de laço, com Papai Noel e com presentes deixados nos tênis, já não sonha mais. Porque o mundo não lhe permitiu continuar sonhando.

Mesmo assim, a beleza não abandona a história. O afeto entre Zezé e Manuel Valadares — o Portuga — é um bálsamo, um tipo de amor que não se fala, mas se sente em cada gesto, em cada carona, em cada conversa. Uma amizade que não tem nome, mas que ocupa o espaço que antes era só dor.

Fechei o livro como quem recolhe uma carta antiga, daquelas que chegam tarde demais, mas ainda assim curam. Respirei fundo e entendi por que essa leitura precisa ser feita — ou refeita — em algum momento da vida adulta.

Porque Zezé, com seu pé de laranja lima, nos reconecta com o menino ou a menina que deixamos enterrado em algum canto da memória. Ele nos lembra que houve um tempo em que as árvores nos falavam, e em que a solidão era povoada de coisas inventadas — não para fugir da realidade, mas para suportá-la.

Ler Meu Pé de Laranja Lima é como voltar ao quintal da infância, aquele que existiu — ou que a imaginação criou para nos proteger. É permitir-se reencontrar o coração menino que ainda mora em nós, mesmo que escondido sob a rotina dos boletos, dos compromissos, dos silêncios adultos.

É também um livro sobre escutar. Escutar com o corpo inteiro. O que Zezé desejava não era presente, comida ou brinquedo: era alguém que parasse o tempo para ouvir o que ele tinha a dizer. E se hoje o mundo continua cheio de Zezés — crianças com mundos inteiros sufocados dentro do peito — talvez a maior lição seja essa: ser a árvore que escuta, o adulto que acolhe, o Portuga que oferece ternura sem condição.

No fim daquela sexta-feira, quando o sol já se recolhia por entre telhados, saí no quintal. Um passarinho cantava de leve na goiabeira. E por um instante, achei que escutei uma voz saindo do tronco. Sorri. Talvez fosse o meu Minguinho me dizendo: “Você ouviu, não ouviu?”

Ouvi, sim. E agora que ouvi, não posso mais esquecer.




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