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Colunas
23/12/2025 - 16h25
O PRESENTE QUE FAZ O RESTO TER SENTIDO

Saí do trabalho com aquele cansaço que não pesa só no corpo: pesa também na forma como a gente olha o mundo. Não é uma exaustão dramática, dessas que viram discurso. É a fadiga discreta de quem passou o dia tentando dar conta do que precisa ser feito, respondendo ao urgente, organizando o que não se organiza sozinho, e ainda assim sentindo que o tempo escorre por alguma fresta que ninguém vê.

Na rua, a tarde estava morna. O céu, desses que parecem não decidir se vão dourar ou acinzentar. Meu filho vinha ao meu lado, no quadriciclo, descobrindo o chão como se fosse a primeira vez. Ele tem essa seriedade engraçada de quem está brincando, mas leva a brincadeira a sério, como se conduzir um brinquedo fosse uma missão e não um passatempo. A cada pequena vitória (desviar de um buraco, vencer uma subida curta, manter o equilíbrio), ele me olhava de relance, conferindo se eu tinha visto. Eu via. Eu sempre vejo. E, ao mesmo tempo, me espantava com a quantidade de coisas que eu deixo de ver quando estou sozinho.

Andávamos devagar. Não havia pressa. E isso já era, por si, um tipo de presente raro: caminhar sem meta, sem cronômetro, sem aquela culpa moderna que transforma descanso em atraso. Meu filho não sabe disso, claro. Ele apenas vive. E ao viver, me obriga a reaprender o básico: estar.

Foi então que passamos em frente a um lote com um muro baixo, onde algumas crianças brincavam com uma caixa de papelão. Não era uma caixa bonita, dessas que saem de lojas com logo e fita de cetim. Era uma caixa grande, amassada nas quinas, com marcas de chuva, talvez de barro. E, ainda assim, parecia o objeto mais importante daquela rua.

A caixa era tudo. Era carro, era casa, era navio, era esconderijo. Uma menina tinha se sentado dentro como se fosse capitã de um mundo portátil. Um menino empurrava a caixa com solenidade, como quem conduz um veículo de verdade. Outro, mais novo, batia na lateral como se testasse a resistência do universo. E havia um acordo entre eles: aquilo ali tinha valor porque eles decidiram que tinha.

A cena me pegou de jeito, não por nostalgia, eu desconfio de nostalgia quando ela vira perfume pra disfarçar a vida, mas por uma clareza incômoda. A caixa era pobre de matéria e rica de sentido. E eu, que vinha do trabalho, carregava por dentro o contrário: muita matéria ao redor, e uma certa pobreza de sentido acumulada na pressa.

Meu filho diminuiu, curioso. A roda do quadriciclo fez um barulhinho de areia. Ele apontou, como quem reconhece uma linguagem. Crianças entendem caixas. Elas entendem qualquer coisa que ainda não foi condenada a ser só “coisa”. No olhar dele havia uma vontade de descer, de ir, de participar daquele ritual simples. Eu quase disse “não”, por hábito, por medo do imprevisível, por cansaço. Mas não disse. Apenas parei, e ficamos olhando.

E, naquele instante, a pergunta me atravessou sem pedir licença: quando foi que a gente começou a embrulhar tudo e, ao embrulhar, perder o conteúdo?

Porque eu vi, naquela caixa, o que o Natal tenta nos ensinar e a gente insiste em traduzir errado. Há presentes que vêm com papel brilhante, etiqueta e prazo de troca. E há presentes que ninguém embrulha, porque não cabem. Tempo não cabe em caixa. Escuta não cabe em caixa. Paciência não cabe em caixa. Reconciliação, então, não cabe em lugar nenhum, ela só acontece quando o orgulho aceita ficar do lado de fora, feito sapato antes de entrar.

Eu pensei no Natal chegando como chega todo ano: com suas listas, suas compras, seus avisos de promoção, sua pressa organizada. Pensei na ansiedade que a gente chama de “clima natalino” e que, muitas vezes, é só medo de não dar conta: de não comprar o suficiente, de não agradar, de não cumprir a tradição, de não entregar o espetáculo de família feliz. E pensei, com um desconforto quieto, que a maior parte dos nossos embrulhos serve para esconder a falta de presença.

Meu filho, ali do meu lado, não queria nada embalado. Ele queria ir. Queria se misturar. Queria existir perto de outras existências. E essa vontade dele parecia mais sensata do que todas as estratégias adultas de felicidade.

Uma das crianças percebeu nossa pausa. Olhou pra nós com aquela coragem sem cerimônia que só criança tem. Fez um gesto simples, como quem oferece: “quer brincar também?” Não disse com palavras, mas disse com o corpo. O convite era um presente sem fita, sem custo, sem intenção de impressionar.

Meu filho respondeu com um sorriso que não pede permissão ao rosto. Desceu do quadriciclo com cuidado, como se estacionasse um cavalo. Deu dois passos e parou, esperando meu aval. Eu, que vinha do trabalho, eu, que carregava tantos “nãos” prontos, senti uma coisa quase física: um “sim” abrindo espaço dentro de mim.

Ele foi. Encostou na caixa. E, em segundos, já estava dentro do mundo deles, sem contrato, sem currículo, sem apresentação. Eu fiquei de fora, como sempre ficamos: adultos são espectadores daquilo que um dia foram. Mas, naquele momento, eu não senti tristeza. Senti uma espécie de gratidão: a vida ainda sabe oferecer cenas que nos educam.

Observei o jeito como eles negociavam o brincar. Um queria ser motorista, outro queria ser passageiro, outro queria só empurrar. E, em vez de ruptura, havia ajuste. Eles se irritavam, sim, mas se refaziam rápido. Era como se a reconciliação fosse um movimento natural, não um evento solene. Ali ninguém guardava mágoa como quem guarda documento. Ali o tempo não era inimigo. Era matéria-prima.

E eu, que tantas vezes digo estar sem tempo, percebi a frase escondida por trás disso: eu estou sem tempo porque dou meu tempo ao que não me devolve vida. Dou ao ruído. Dou ao excesso. Dou à obrigação de parecer resolvido. Dou ao medo de falhar. E, quando chega o fim do dia, o pouco que sobra eu protejo como se fosse um bem frágil, sem perceber que o tempo só vira bem quando vira presença.

Fiquei pensando em quantas caixas jogamos fora sem saber que elas podem virar mundo. E quantos mundos jogamos fora porque preferimos comprar caixas prontas, com manual de uso, garantia e aparência de sucesso. A caixa de papelão daquelas crianças era quase um manifesto: o essencial não precisa de luxo; precisa de imaginação, e imaginação, no adulto, tem outro nome: atenção.

Meu filho saiu da caixa alguns minutos depois, suado de riso, com as mãos sujas de poeira e um brilho que nenhum embrulho entrega. Voltou ao quadriciclo como quem volta de uma viagem. Eu ajeitei a roupa dele, limpei o rosto com o dedo, e ele me olhou como se dissesse: “viu?”. Eu vi. Eu vi demais.

Seguimos nosso caminho. A tarde já se inclinava, e as sombras começavam a alongar a rua. Eu ainda estava cansado, mas era um cansaço diferente, como se uma parte do peso tivesse mudado de lugar. Não porque a vida ficou fácil, mas porque algo dentro de mim lembrou o que importa.

E foi aí que eu entendi, com a clareza simples que só vem depois de uma caixa de papelão: no Natal, e fora dele, o presente que ninguém embrulha é o único que, quando a gente dá, não se perde; ao contrário, aumenta.

Presença é o presente que faz o resto ter sentido.

 



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